Não era a primeira manifestação para a qual íamos juntos. Naqueles meses elas sucederam-se. O encontro ficou combinado em casa de um de nós. Nasci em 83 e trinta anos depois tenho novamente o FMI a barricar o caminho do futuro. Uma vez mais, a canção de José Mário Branco fazia sentido em Portugal e possivelmente fora dele também. Estava tudo pronto. Já estávamos todos, a sala enchia-se de fumo e ansiedade. A manifestação prometia acontecer, já havia murmúrio e os tambores rufavam ao longe. Estávamos certos de ali estar. Respira-se esperança quando alguém nos olha como cúmplice. 
O disco está a rodar. As colunas apontadas à rua. José Mário Branco canta de novo. Nós estamos agora sentados de olhar baixo. Ficou pesada a sala. Parecemos não conseguir cruzar olhares. A canção continua impiedosa no retrato da nação e a voz de José Mário Branco ecoa pelos Aliados até que, repentinamente, o disco encrava:
 
"Esta merda não anda, Esta merda não anda, Esta merda não anda, Esta merda não anda,Esta merda não anda,Esta merda não anda,Esta merda não anda,Esta merda não anda,Esta merda não anda, Esta merda não anda, Esta merda não anda, Esta merda não anda, Esta merda não anda...”
 
Quis deus ou a história, se preferirmos, que o vinil nos presenteasse com tão dura repetição. Finalmente um de nós levantou-se, deu um toque na agulha, a canção prosseguiu e nós também.  
 
 
 
"Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe, no fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco. Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra, o meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez. Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, falta-me um dente. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto."
José Mário Branco - FMI
Exposição colectiva Co'Licença - Maus Hábitos, Porto, Portugal
 
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